20 maio 2012

Contos de um Concurso


 Não havia como reescrever em hortelã o gosto amargo da noite mal dormida.
Com o sufoco dado ao tráfico na cidade do Rio, cresceu o tiroteio nas comunidades de São Gonçalo e até o funk ensurdecedor dos bailes de sexta do movimento emudeceu.
O tira-sono agora era o rá-tá-tá das metralhadoras, pontuadas ritmicamente pelas pistolas e granadas ocasionais na estranha luta por um território onde poucos querem morar e muitos moram amontoados.
Senti medo de morrer de surpresa no sofá da sala sem ter dito a Marisley o nome que nossos filhos teriam. Pra aplacar a angústia, abri várias cervejas e fumei quase um maço assistindo a algum filme de guerra. A vizinha, crente, sintonizou em algum programa messiânico, chorava e berrava tanto por Jesus que cheguei a achar que ele fosse surdo.
Esforcei-me para domir com a combinação funk-tiroteio-correria-vizinha histérica mas não precisava me preocupar. A profusão de despertadores dos celulares chineses não me deixaria perder a hora de sair.
Pela manhã, era descer a escadaria e caminhar até o ponto de ônibus, onde sortudos como eu, vêem o sol nascer apenas para garantir um lugar sentado no coletivo e enfrentar menos horas de engarrafamento.
Eu queria mesmo é ser burguês. Viver despreocupado como o meu patrão que, a essa hora, certamente está dormindo.
  • Bom dia, seu Carlos!
  • Tudo bem, José? É bom vê-lo aqui, sempre cedo, pegando firme na faxina.
  • O senhor esqueceu de recarregar o meu vale-transporte, sabia?
  • E como você fez pra chegar?
  • O trocador do terceiro ônibus me deixou vir em pé ao lado dele. Ouvi “desce” em côro na primeira condução. Desci humilhado, sem um puto no bolso. A segunda tentativa foi ainda pior pois tive de ouvir de um estudante que um fudido estava atrapalhando sua vida.
  • Que coisa horrível!
  • Horrível mesmo foi saber que a firma onde eu trabalho está envolvida no escândalo de super faturamento das licitações e vocês sequer carregaram o meu vale transporte.
  • Quem te disse isso?
  • O trocador, Seu Carlos!

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    Juliana tinha agora oito anos. Perguntava a mãe, Dona Ester, o significado do mundo, o nome das estrelas e das flores, fingia ser princesa e sorria lindamente enquanto corria com as outras crianças no pátio do batalhão de infantaria.
    Mas, toda vez que chovia, Juliana chorava em desespero e não adormecia à noite. Chamava pelo pai, um dos muitos desaparecidos no desabamento do Morro do Bumba, em Niterói. Seu choro soava forte pelos corredores do abrigo improvisado que virara casa para mais de setecentas pessoas arrancadas de seus lares. Não podiam reclamar da menina ou repreendê-la. Todos ali também choravam, ainda que em silêncio, como Ester.
    • O que significa viçoso, mãe?
    No abril de 2010, no bairro de Viçoso Jardim, o morro, coberto não por verdejantes árvores ou arbustos mas pelo intrincado emararanhado de casas, veio abaixo. Diziam que a comunidade erguera-se sobre um aterro sanitário mal feito. O governo tentou empurrar a culpa para os moradores. A imprensa denunciou um montão de coisas. Coisas que seriam levadas mais a sério se não fosse ano de Copa do Mundo.
    • A gente vai ter uma casa só nossa, mãe?
    Em outro aterro sanitário mal feito, na casa de sua tia no bairro de Itaoca, Ester e sua filha souberam da tragédia. Haviam saído de casa no dia anterior ao deslizamento. A mãe chorou por vários dias enquanto via os caminhões de lixo tóxico e escombros despejarem o Bumba no município vizinho. São Gonçalo era o enorme tapete pra onde o governo de Niterói havia varrido o seu lixão.
    Juliana demorou a entender que não voltaria para sua casa. Demorou a entender que não veria seu pai atravessar a porta trazendo pirulitos.
    No lixão que acolheu o lixão não poderiam morar. A quantidade insuportável de moscas era um risco à saúde da menina. Após enfrentar sem sucesso o IML, reconhecendo os corpos de vizinhos e amigos sem achar o de seu marido, Ester levou a filha para o abrigo na Venda da Cruz. Não enterrou o companheiro. Não recebeu a pensão.
    Ela pôs a filha no colégio, ganhou um ar duro, levou a tia para junto de si e passou a trabalhar como diarista.
    As crianças reinventam a vida. No batalhão, Juliana fez amiguinhos e viu passar dois aniversários. Pediu um presente especial no último:
    • Não tem foto do papai, mãe?
    • Tem essa aqui, filha. - E a menina sai correndo, satisfeita com a foto três por quatro arrancada de um documento.
    Chovia naquela tarde quando sua mãe abriu a carta que finalmente lhe deu direito à pensão deixada por Argemiro. Não conseguia entender a forma estranha com que ela sorria. Mas ao ver que as nuvens emprestaram lágrimas a Ester, Juliana perdeu finalmente o medo da chuva.

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    • Segura a bolsa da velha, Maneco! - grita Jorge para o franzino moleque nascido sem pai e criado na rua.
    • Ladrão! Ladrão! - grita a velha, Eulália, na esquina da Ouvidor, segurando forte a alça puxada pelo “trombadinha”.
    • Ladrão! Pega! - gritam a menina que sai do McDonald's indignada, o universitário, o camelô, o executivo e o guarda municipal que nunca passava a essa hora.
    O plano era atacar os mais fracos e distraídos na “muvuca” do centro da cidade à hora do almoço. Melhor momento do dia para não encontrar heróis. Preocupados demais em voltar ao trabalho depois de encontrar um lugar pra comer ninguém atrapalhava. Os bandidinhos eram predadores soltos na savana de concreto. Mas, dessa vez, o assalto a bolsa listrada da coroa de cabelo azul “deu ruim”, atraiu atenção demais.
    • Fudeu, menor! Rala peito! - e os seis que o acompanhavam somem na multidão como se tivessem sido engolidos pela cidade.
    Muita gente nervosa falando alto e avançando em direção a Maneco. Vai ser porrada de novo, zoação, quiçá FEBEM. Esculacho, tapa na cara, um monte de esporro e palavrão esquisito:“punguista!”, “meliante”, “infrator”.
    Assustado, o moleque de doze anos, com mãe viciada em crack e duas passagens pelos abrigos da prefeitura do Rio, converte o “puxão” dado à bolsa num abraço. Já viu alguém que se pusesse na posição fetal de pé? Com o polegar na boca e os olhos cheios de lágrimas, preparando-se para ser imolado, o rosto do menino se transforma. O olhar de desamparo toma o lugar da máscara feroz que assustava os incautos transeuntes dessa esquina da Avenida Rio Branco.
    A multidão não quer saber de nada não. Quer cobrar de Maneco a dívida da quadrilha de meninos liderada por Jorge, quatorze anos, que atua na área que vai dali até o Largo de São Francisco.
    • Vai chorar agora, né, seu bostinha?
    • Esse fingimento aí não te salva não.
    Mas Eulália, encontra o olhar do garoto e vê que o medo havia lavado a maquiagem de ódio e abandono. O guarda municipal balança o cacetete. Ela se ajoelha, abraça Maneco e o comprime fortemente contra as tetas murchas. A multidão ainda grita. Ela sussurra “calma” em seu ouvido. O camelô quer ver sangue de criança espalhado na calçada. Ela pensa nos filhos que deixou abandonados no Pará há trinta anos. O executivo quer separá-la do menino. “Você podia ser meu neto”, diz, emocionada, puxando-o pra longe dos linchadores.
    Maneco vê nos olhos da mulher uma dor parecida com a sua. Sente novamente um doce carinho de mãe. Teria ele encontrado a redenção naquela tarde? Seria adotado pela madame carente? Iam acabar a noite ao relento, a lata de benzina e as agressões?
    • Assim ele vai escapar, minha senhora. - diz a menina do milk shake.
    Ele sabia que não ia ser ali nem hoje.
    • Desculpa, vovó! E obrigado! - sussurra Maneco desvencilhando-se do terno abraço pra sumir com a carteira da idosa na mão.


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      A Bel

      Você pode intuir o que é bom e belo, pode intuir o que é perfeito e harmonioso, o que é justo ou não. Só não poderá fazê-lo sob a influência do amor. O amor, caro amigo, nubla o juízo e a temperança, ignora o senso comum e nega a recompensa aos que realmente a merecem.
      Inveja? É inofensiva e lisonjeira, coisa para disputas menores. A disputa pelo amor, essa subverte a lógica das alianças naturais e pode inverter a polaridade das intenções.
      Eu sempre tive orgulho das minhas realizações. Fui o melhor aluno da classe, o atacante goleador, aquele que aprendeu inglês antes dos quatorze, que ganhou bolsa para ir à Europa e que sabia tocar piano.
      Pergunte-me onde estava ela?
      Dando atenção a Maribel e às suas futilidades. Nunca disse uma palavra elogiosa ao meu desempenho escolar, sentou na arquibancada para torcer pelo filho ou o viu conquistar seus prêmios. Acaso eu não fazia mais do que a minha obrigação? Sim, podia fazê-lo por mim, como você diz. Mas toda vitória era incompleta e troféus de nada valiam sem o seu reconhecimento. O maior troféu de minha mãe não era eu por mais que me esforçasse.
      Cobiçava àquela atenção dada ao balé de minha irmã, a sua dedicação em melhorar as notas da menina que gazeava aula para brincar com a maquiagem roubada e bebia escondida os licores de papai. Cobiçava algo que era meu por direito e que me foi negado.
      Maribel parecia não parecia perceber o quanto aquilo me desagradava. Procurava por mim para contar suas histórias absurdas de namoro e bagunça. Isso me deixava ainda mais irritado. Como lutar contra um inimigo que não o odeia? No fim das contas, percebi ela não era a culpada pelo meu abandono sentimental.
      O que eu fiz? Passei a odiar as duas e busquei a distância num outro país. Maduro, né? Não queria mais ver a condescendência materna com a vida desregrada que maninha levava.
      E o que me perturba agora, doutor?
      Encontrei, mamãe no funeral de Bel depois de quatro anos em que sequer nos falamos.
      Ela me disse que se tivesse sido mais irmão ela não teria embarcado na dependência química. Aquilo foi uma porrada na cara. Refleti sobre o tempo que perdi mergulhado naquele sentimento escroto e edipiano. Antes tivesse me despido do orgulho e aberto meu coração. Realmente poderia ter convivido mais com Bel, não tê-la salvado, mas aproveitado o amor que ela teria me dado se não estivesse tão obcecado com a disputa.
      Não sei se fiz certo em responder, doutor. Senti que me vingava.
      O que respondi?
      “A culpa foi sua, mamãe.”





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