24 março 2004

Análise de Diana Pichinine sobre o Filme de Mel Gibson

Sem desejar ferir quaisquer suscetibilidades, honestamente, gostaria de repassar a vocês uma inteligente e arguta análise do engôdo cinematográfico de Mel Gibson chamado "Paixão de Cristo", que já levou milhões de norte-americanos ao cinema e, infelizmente, promete fazer o mesmo sucesso aqui em terra brasilis, haja visto o parecer da CNBB saído no final da semana passada, segundo o qual o filme é um relato histórico indiscutível, tradução literal das páginas dos evangelhos... O sociólogo salienta o esperado sucesso do filme junto a um certo público cristão, e analisa o perigo aí presente de vivermos uma nova onda de histeria religiosa e falseamento das histórias do judaísmo e do cristianismo.
Qualquer discussão sobre esse tema que passe por cima da evidência histórica da morte de Cristo pelos romanos e não pelos judeus, como faz crer o filme (não que o lobby judeu norte-americano, superinfluente na vida pública daquele país e no mundo de um modo geral, precise ser defendido. Muito pelo contrário! Mas, será que andaram esquecendo o que as iniciais INRI sobre a cruz representam? Então recordemos: Jesus de Nazaré, rei dos judeus), revela-se como uma espécie de maniqueísmo religioso, propaganda com "p" maiúsculo do fundamentalismo cristão norte-americano, e o pior de tudo, nada de cinema, já que, segundo todos os críticos que já tive a oportunidade de ler até agora, passando pelos mais diferentes perfis, o "espetáculo" de Gibson envernizado pelas falas em aramaico, latim e hebreu não passa de um entretenimento sangüinolento (sádico ou masoquista, dependendo do ponto-de-vista do espectador) que coloca no chinelo e torna pueril qualquer dos filmes protagonizados por Jason ou Freddy Krueger.
Que mundo louco o nosso! Enquanto na antigüidade os romanos matavam judeus e cristãos crucificando-os ou jogando-os à cova dos leões, e os cristãos, por sua vez, através das Cruzadas, do Tribunal da Santa Inquisição e da colonização das Américas, trataram de fazer uma faxina étnica (pseudo-religiosa) mundo afora, o século XX viu o nazi-fascismo exterminar judeus, homossexuais, comunistas e não-arianos em geral em nome do III Reich, e hoje, num cenário já nem um pouco tranqüilo levando-se em consideração os conflitos vividos no Afeganistão, Paquistão, Iraque, Espanha e Kosovo, vemos alguns cristãos fundamentalistas tentarem iniciar um novo surto de histeria religiosa incensando o ódio aos judeus por terem sido os "verdadeiros assassinos de Cristo"...
Quando é que vamos aprender a reconhecer nossos verdadeiros inimigos que, de um modo geral, nada têm a ver com identidades religiosas? Os judeus não são os maiores inimigos dos cristãos nesse momento histórico, mas dos palestinos, e a luta ali não é religiosa, como pode parecer aos incautos, mas pelo domínio político e militar de um território. O apoio incondicional, econômico e militar, dos Estados Unidos a Israel como forma de manter o "equilíbrio" no Oriente Médio e a invasão do Iraque sob a desculpa de encobrir o Talibã e possuir armas de destruição em massa são provas disso!
É preciso lembrar com Marx que a religião apartada do crivo da razão pode atuar como um elemento ideológico potente e estratégico de falseamento da relidade histórica, capaz de atuar como uma cortina de fumaça dos reais interesses (leia-se interesses materiais e políticos) em jogo. Para dar o que de melhor pode oferecer ao homem é necessário que a crença, caso sinta-se-a como necessária, jamais se confunda com a negação da razão e da história, como já dizia S. Tomás de Aquino (e certamente defendem todos os religiosos lúcidos). Por baixo dessas inúmeras e falsas "guerras religiosas" encontra-se um mesmo protagonista e a tarefa é identificá-lo (quem arrisca?). Por isso mesmo me parece que a leitura é esclarecedora e interessa a todos.
Bjs,
Diana
São Paulo, domingo, 21 de março de 2004




+ cinema


"A Paixão de Cristo" repropõe a imagem dos judeus e dos Evangelhos que os cristãos construíram para si no processo de se tornarem religião dominante

A recriação de uma mitologia
Gabriel Bolaffi
especial para a Folha

Quando eu era menino, com seis anos de idade, em 1940, um vizinho coetâneo me perguntou: "Por que você matou Cristo?". Ele era filho de uma família educada, com o qual eu brincava todos os dias. O episódio nunca mais me saiu da mente, ainda que demorasse para que eu me desse conta de quanto era significativo. A verdade é que, até o início dos anos 1960, quando, por razões que tentarei apontar mais adiante, as coisas começariam a mudar, as relações entre cristãos e judeus sempre foram as piores possíveis. Para constatar a atitude dos primeiros com relação aos últimos, basta consultar qualquer dicionário da língua portuguesa ou de qualquer outra. Quanto aos judeus, sempre se referiram pejorativamente aos "não-judeus", chamando-os de "goy", "arel", "sheiquez" (gentios e não-circuncisos) e outros pejorativos. O antagonismo e mesmo o ódio entre os dois grupos são históricos, datando desde os primeiros séculos da era cristã até o passado muito recente. Aliás, qualquer pessoa razoavelmente informada da minha geração sabe disso muito bem, e não deveriam ser necessárias mais explicações, não fosse pelo tolo esforço revisionista de tantos historiadores ou funcionários deste ou daquele lobby. Mas, como a onda revisionista é tão avassaladora, lembremos os eventos e os fatos principais.

Dissidência
Como afirma Léon Poliakóv, na sua memorável "História do Anti-Semitismo" (ed. Perspectiva, 1978, quatro volumes), ainda no final do primeiro século da era cristã o cristianismo começaria a se propagar como uma dissidência do judaísmo. A princípio uma dissidência muito tênue. Como diria o apóstolo Paulo: "Com os judeus, procedi como judeu...; com aqueles que estão sem lei, (procedi) a fim de ganhar os que estão sem lei. Eu era fraco para com os fracos, a fim de ganhar os fracos" ("Primeira Epístola aos Coríntios", apud Poliakóv, op. cit.). A princípio, o proselitismo cristão se daria principalmente entre as colônias judaicas da diáspora, mas logo se estenderia aos gentios. Ora, diz Poliakóv, "judeus e cristãos reivindicam ambos o deus de Abraão, pretendendo ambos ser fiéis de suas vontades, venerando ambos o mesmo livro sagrado, mas cada um interpretando-o à sua maneira. Acrescentemos que as autoridades romanas parecem não ter feito, no início, muita distinção entre uns e outros (os textos romanos mais antigos os confundem pura e simplesmente). Poucas vezes se viu um estado de coisas tão propício para suscitar animosidades irredutíveis" (Op. cit., vol. 1, "De Cristo aos Judeus da Corte", pág. 17). Em síntese, as duas religiões, à medida que se propagavam pelas margens do Mediterrâneo, se tornaram rivais, competindo acirradamente pelos novos prosélitos. Dessa competição e da posterior supremacia cristã, posto que durante vários séculos o judaísmo continuou a ser visto como uma crença rival, resultariam o ódio, o anti-semitismo e a acusação feita aos judeus de terem sido "deicidas". Poliakóv está muito bem documentado e, como ele mesmo afirma, nesse contexto, qualquer discussão sobre a "historicidade" dos Evangelhos se torna irrelevante. Em seu filme tão controvertido, Mel Gibson nada mais fez do que retratar a imagem dos judeus e dos Evangelhos que, certa ou errada, os cristãos sempre construíram para si próprios no processo de se tornarem religião dominante na Europa e mesmo depois disso. Aliás, tudo indica que ele retratou a imagem que recebeu da sua família e que sempre teve desde a sua infância. Não é por outra razão que seu filme está sendo tão bem-sucedido entre a audiência de seu país, em que pese toda a controvérsia. Já não se vê o filme com a animosidade de antanho, mas se reconhece nele o que sempre se aprendeu. Nisso tudo, o mais surpreendente é a reação de diversos establishments. Como se alguma das suas lideranças tivesse esquecido um passado tão recente, como se jamais tivessem visto uma "malhação de judas" ou seus equivalentes de outros países. É verdade que as coisas mudaram. A Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a imigração de judeus para os EUA e sua rápida ascensão social e intelectual, a secularização do mundo europeu, tudo isso e eventos correlatos contribuíram para uma forte mitigação do "ódio antico" (cfe. Cesare Mannucci, Mondadori, Milão, 1993). Na verdade, já não persiste o antigo ódio. Mel Gibson, ao soprar as brasas que restaram, mostra apenas que é um oportunista maligno e insensato.

Gama variada
Mas não serão oportunistas todas as hierarquias de cultos fundamentalistas, que insistem em fazer de conta que a humanidade ainda não passou pelo Iluminismo e pela "idade da razão"? George W. Bush? Os neo-evangélicos do nosso pobre Brasil? Osama bin Laden? As direitas religiosas de tantos países? Ou tantos outros, iguais a Mel Gibson, que andam por aí?
Quanto aos aspectos cinematográficos do filme, ainda que não sejam objeto desse texto, não posso deixar de registrar que, se Mel Gibson realmente tivesse querido ser fiel aos Evangelhos, poderia ter criado um Cristo e demais personagens mais fiéis aos seus conhecidos fenótipos. Mas oportunismo insensato e logro o levaram a preferir uma concepção "aggiornata" de Cecil B. de Mille e de Hollywood.



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Gabriel Bolaffi é sociólogo e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, autor de "A Saga da Comida" (ed. Record), entre outros.

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