27 maio 2004

As razões da auto-ajuda

Os títulos mais vendidos nas livrarias em quase todo o mundo de hoje são os associados à auto-ajuda, a técnicas que vendem ao leitor a idéia de que ele obedecendo certas regras e medidas será bem sucedido naquilo que procura, atuando tais livros como um moderno catecismo de convencimento e inserção do indivíduo na sociedade de mercado.

A Soberania do egocentrismo

É um pedido de ajuda?
"A conduta pessoal... é perturbada por um sentimento de vazio e constante incerteza valorativa... em toda a parte o homem é deixado entregue à sua liberdade. O resultado é uma desorientação crescente do indivíduo diante do mundo e de si mesmo que enseja... uma vigorosa tendência a direcionar a procura de bem-estar dentro da própria subjetividade."
F. Rüdiger - Literatura de Auto-ajuda e Individualismo, 1996


A extraordinária expansão da literatura da auto-ajuda nos tempos que correm é antes de tudo um sintoma; o indício de que estendeu-se ao máximo o culto ao individualismo, desenraizando as pessoas de tudo e de todos. É o entronamento do final do egocentrismo na era moderna. É, essa literatura, o evangelho de pessoas que sentem não ter mais nada em que se apoiar, expressão mais viva do isolamento e do subjetivismo que a sociedade ultraliberal de hoje alcançou.
Resultou isso da revolução que destruiu ao longo desses últimos dois séculos com a sociedade patriarcal, hierarquizada e corporativa, que até então predominava, onde sempre se estava preso a uma grande família, a uma corporação de ofício, a uma religião oficial ou a um estado todo-poderoso. Para essa doutrina hiperindividualista a verdadeira realização pessoal só pode ocorrer quando ela se faz com seus próprios meios, o seu slogan é make yourself, faça-o sozinho!

A liberdade antiga e a moderna

Quem de certa forma melhor captou, enaltecendo-a, o sentido dessa nova liberdade, ainda em sua gênese, foi Benjamim Constant, um dos teóricos do liberalismo francês, quando a expôs em traços gerais no discurso que fez sobre a diferença da liberdade entre os antigos e os modernos, nos princípios do século XIX (La liberté entre les anciennes et les modernes, 1819). Para ele o tipo de liberdade defendida pelos jacobinos, que extrapolou durante o terror de 1793-4, resultara de um grave equívoco.

O ação política direta era impossível (cidadãos plantando a árvore da liberdade durante a revolução de 1789)
Os líderes revolucionários de 1789, inspirados em J.J.Rousseau, tinham apenas como referencial a ser seguido a liberdade dos habitantes das cidades-estados greco-romanas. Nelas praticava-se um civismo geralmente voluntário (raramente coercitivo), no qual os homens livres partilhavam as atividades públicas e o próprio poder, recorrendo às assembléias e comícios.

Segundo Benjamin Constant, os jacobinos, em especial Robespierre, erraram ao acreditar ser possível impor à moderna sociedade esse mesmo tipo de liberdade, digamos, ativista, exigindo a militância constante de todos nos assuntos públicos, na qual o cidadão que se negava a engajar-se era chamado de "morno" pelos revolucionários de 1789 (de idiotén, o idiota, entre os gregos, de alienus, um alienado, entre os romanos), o que muitas vezes podia significar uma sentença de morte para ele.


A liberdade moderna

Para Constant a característica mais significativa da liberdade moderna era que os indivíduos almejavam ser deixados em paz, sendo-lhes indiferente em geral o chamado cívico à participação. Votar num representante qualquer já lhes parece um esforço exagerado (basta ver as resistências ao voto obrigatório). Usufruir da liberdade pessoal, bem como da independência financeira conquistada, sem qualquer tipo de constrangimento ou coação social, era a sua maior ambição.

Talvez fosse esse o sentido oculto da frase "que cada um cultive o seu jardim", com que Voltaire encerrou o seu Cândido, ou o otimismo, de 1759. O padrão comum aos cidadãos da era moderna é um ser omisso ou preguiçoso no tocante ao coletivo, porém ágil, ativíssimo, no exercício do seu interesse próprio. Politicamente ele é um solipsista. Hoje ele só consente em ser mobilizado em função das coisas do consumo, disparando para tanto atrás de ofertas ou acotovelando-se nas filas das liquidações

Faça da vida uma aventura

Nietzsche, muito tempo depois de Constant, comparou essa acomodação do sujeito com suas coisas (o seu mundinho e a sua propriedade), com a placidez ruminante do bovino. Daí recomendar, para romper com essa pasmaceira, seguir-se uma vida perigosa, audaz, arriscada e até violenta. Tornar a "existência uma aventura", "viver perigosamente", foi o seu conselho.
Obedecendo, entretanto, à lógica última de Constant, chegamos ao presente onde cada um é um microcosmo, sentindo-se tudo girar ao redor de si mesmo. "Eu sou o meu mundo", disse o filósofo Wittgenstein.


O consumidor-rei

O indivíduo quer ser deixado em paz.

Ao mesmo tempo em que há na sociedade contemporânea uma inédita convivência entre milhares ou milhões de pessoas, onde cada um vive cercado de gente por todos os lados, uma colossal estrutura econômica e publicitária, gerada pela aceleração do capitalismo, entra em ação para provocar uma fratura, uma cisão ampla e total de cada um com os demais, fazendo crer a cada uma das pessoas serem elas algo exclusivo, desgarradas do restante, sem ligações significativas com os demais.

É a soberania do consumidor-rei. O indivíduo opõe-se e contrasta com a multidão, com as massas. Nos últimos anos a radicalização da vida moderna e do ultraliberalismo esvaziou, desativou e desmoralizou praticamente com todas as escoras familiares, sociais, institucionais e psicológicas até então existentes (dissolução dos casamentos, instabilidade no emprego, obsolescência profissional, fragilização dos partidos e sindicatos, descrédito da religião, debilitação do estado, etc..) O que parecia ser de concreto virou papelão.

O que restou afinal ao indivíduo senão recorrer a si mesmo? O limite do seu mundo é o limite da sua leitura. Metaforicamente a literatura da auto-ajuda assemelha-se um tanto à situação do impagável barão de Munchausen, aquele sujeito que caído num buraco lodoso tentou sair dele puxando seus próprios cabelos.

Texto de Voltaire Schilling - (Extraído do seu site no TERRA)

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