Asfalto Voragem
Quase chegou a esboçar um pensamento a respeito da idiotice do mundo... Foi quando o despertador começou a berrar.
Um tapa certeiro dava conta do barulho.
Sentia que não iria levantar da cama. Seu estômago doía, sua cabeça rodava ou então era o contrário... Não importa. Não podia enfrentar o dia hoje.
Quando estava preste a se entregar ao mal-estar que o corrompia, dando-lhe o subsídio para escapar de sua malévola rotina, olhou desconfiado para seus pés e estranhamente assustado deu um pulo da cama. Teve um súbito medo de estar numa fábula de Kafka.
Comparar a si mesmo com um inseto abalara por demais o seu orgulho. E, como não poderia se esconder de suas obrigações transformando-se em barata, levantou-se finalmente, de abas caídas, impelido pelo remorso e não pelo senso de responsabilidade. Ainda imaginava como seria bom estar febril em frente a tevê, mas só podia dirigir-se resignado à pia do banheiro.
Queria morrer de repente, ali mesmo. Morrer numa falsa surpresa. Não morria porque era burro, pensava. Escovou os dentes raivosamente e olhou para o nada em frente ao espelho... Tornara-se tão cínico que era capaz de ignorar a si mesmo... Sua concentração estava apenas no gosto azedo de sua boca. Apagar este gosto azedo e as lembranças ruins, reescrever em hortelã pelo menos esta manhã.
Queria ter o poder traçar planos detalhados de ação futura. Eram os planos para comprar um carro usado, a tevê a cabo, arranjar uma mulherzinha no sábado, lavar a roupa domingo, ou de coisas menores, como cumprimentar o chefe e não xingar o porteiro, arrumar as meias, cortar o cabelo, as unhas. Acreditava que viveria melhor, como seus amigos, caso os tivesse bem esquematizados. Era uma pena que não pudesse começar agora. Não havia um ritual para eles em sua vida. Planos e ordem só em meio ao caos.
Seus “planos” o assaltavam no meio do sono, na ressaca, como uma lista de ordens desprovidas de libido, reafirmando sua impotência diante de um mundo pronto. Deus e o diabo conspiraram algo contra sua alma, era o que pensava. Resolveu, por isso, não obedecer a mais nada, divino ou profano, nem mesmo a seus desejos imediatos. Sentia que pessoas como ele não tinham o discernimento necessário para separar planos de deveres, desejos de algemas.
Começou a sorrir nervosamente, deixando que o sabonete se perdesse no ralo aberto. Finalmente percebera que, há dias, não conseguia realizar uma vírgula sequer de seus sonhos.
Sua rebeldia se voltara contra ele mesmo.
* * *
Fechar a porta e as janelas, ir até o ponto. Esquecer este pensar-pesar tão negativo.
Não achava normal sua indisposição para com tudo. O mundo já não o agradava de forma alguma e certamente suas mal aproveitadas noites de insônia seguidas por algumas horas de ônibus lotado e de trabalho chato para isso muito contribuíam. Estava entediado, cansado, exausto. Precisava alienar-se, fazer mais sexo ou acertar na loteria.
Ter um carro, uma casa maior ou uma dessas modelos famosas deitadas à sua espera. Para vivenciar isto é que valeria a pena traçar planos para a maioria dos homens de sua idade. Mas ele... Bem... Ele não sabia se sua preguiça ou sua revolta contribuíam para tal, mas negava-se terminantemente a participar dos sonhos desse bando pequeno burguês. Preferia o glamour da marginália ensandecida e virulenta. Sabia que à sua volta havia muito mais do que o que seu estômago ou sua luxúria podiam abarcar. Existiam as pessoas que também sonhavam como estes iludidos e que, no entanto, eram jogadas todo o dia, às cinco da matina ou até mais cedo, em direção ao ponto de ônibus do qual se aproximava agora somente para manter um mínimo de dignidade. Não deixaria que sua alma compactuasse com esse apanhado lunático de ideais-algemas.
Era mais um daqueles no qual a literatura fez mal. Acreditar no romance e na poesia substituía a religião, mas lhe imputava uma forma estranha de ascetismo e devoção. Deveria sempre escolher o contrário, o mais difícil, o mais vago e o mais marginal. Sentia-se sempre forçado a promover este sentimento de inconformismo e liberdade que achava típicos dos homens de artes e letras. Essa era a desculpa mais simpática para o seu humor inconstante e para seus atos impensados.
Sabia que não faria muitos seguidores entre seus companheiros de viagem. Arranjar-lhe-iam uma sigla qualquer e o colocariam no hospício como falso profeta. Seguramente era isto que o impedia de discursar ali mesmo como um pregador de praça. O falso profeta já residia nele e ele o conhecia bem. Era um personagem de sua alma que não respeitava mas lhe trazia um certo conforto em dias como esse.
Observava embasbacado os ônibus que passavam. Abarrotados como sempre a essa hora!
O seu teria de ser o mais vazio hoje. Deixou levianamente que alguns passassem durante longos minutos e então embarcou no mais vazio, que deveria ter umas cinqüenta pessoas pelo menos.
“Abandonai as esperanças todos vós que entrais”, pensou.
E lá estava ele, tranqüilo, chacoalhando como o falso malandro da música e observando o generoso decote da loira, quando a fumaça o perturbou. Queria conter a vontade de socar o indivíduo que, despreocupado com os cinqüenta passageiros, fumava junto à janela. Mas, como poderia ele conviver com tal absurdo? Em seu interior, vozes discursavam freneticamente sobre as causas do mau comportamento. Lembrou-se das mulheres grávidas que embarcavam no ônibus e nenhum marmanjo sequer levantava para dar o seu lugar.
Os ônibus eram uma das muitas fontes para o seu mau humor. Sempre havia algo além da já habitual hiper-lotação que o irritava neles: os péssimos motoristas, com a habilidade em fazer com que o carro freasse bruscamente, lançando seus passageiros em direção ao vidro da frente ou sobre o colo dos que estavam sentados; a má educação dos próprios passageiros, sua falta de solidariedade para com aqueles que notadamente não poderiam se equilibrar enquanto seguravam suas bolsas e para com idosos e deficientes. Fora vítima de todas as variantes possíveis, como a do marmanjo que abre as pernas como se estivesse em seu sofá e a da velhinha que interrompe sua leitura para pregar o Evangelho de cabo a rabo. E sua sorte é que era homem pois, se fosse mulher, já teria dado uma bordoada nos bolinadores de coletivo, figurinhas não raras e típicas daquele horário.
Dificilmente não tomava parte. Não poderia reclamar se não fizesse algo de concreto para mudar a situação, achava. Sempre tentou articular as soluções com boa educação, esclarecendo o que seria correto, achando que assim prestava um serviço àquele cidadão mal instruído. Cansara de avisar aos motoristas de sua responsabilidade quanto à vida dos passageiros e aos mal-educados que era sua obrigação zelar pelas grávidas, idosos e deficientes, além de ser lei e parará... Mas sua paciência estava chegando ao fim.
¾ O senhor podia fazer o favor de apagar o cigarro, disse calmamente.
O indivíduo tomou um susto ao ser cutucado. Fumava um mata-rato fumacento e soprava a fumaça pela janela; o que não adiantava, pois o cigarro fedia muito. Virou-se desleixadamente para nosso amigo e disse num tom jocoso.
¾ Pô, mermão. Eu num ‘tô te incomodando, ‘tô?
Ficou paralisado durante alguns segundos pensando no que fazer... Insistir na catequese do selvagem? Sentia os olhares sobre si e as vozes em seu interior começaram a se multiplicar. Rindo de sua intenção em preservar seus direitos? Olhou mais uma vez para a cara sorridente do negrão. Não iria discutir consigo mesmo. Outro tapa certeiro dava conta do recado.
¾ Esse cara é maluco.
¾ Bem feito pro fumante.
¾ Motorista, pára o carro.
A maldita confusão fez com que ele tivesse que saltar. Um atraso desnecessário e difícil de explicar. Iria andar pelo Flamengo até que sua mente se acalmasse novamente.
Não lhe interessava saber se as pessoas do ônibus entenderam sua atitude desesperada. Chegou até mesmo a duvidar da própria sanidade. Afinal, o cara era grande e ficou tão aturdido pela fuzarca dos outros passageiros que nem reagiu. Ou vai ver que era um bundão mesmo, pensando bem.
De qualquer forma, sua pequena aventura matinal o divertiu de uma forma mórbida e deu uma longa risada pensando em como Franco reagiria ao saber daquilo. O cigarro do cara saiu voando pela janela e dois passageiros surgiram do nada como turma-do-deixa-disso. Seguraram-no e foram rapidamente o empurrando em direção à porta sem maiores complicações. “Quem devia ter sido expulso do ônibus era ele porra!”, gritava para os “seguranças”. Mesmo assim foi lançado para fora.
Saltou no Flamengo e decidiu andar um pouco. Caiu em si e percebeu que realmente exagerara. Ficou lá, observando a baía e seus personagens para relaxar.
Irresponsável. Era isso que lhe sobrava. Era por isso que podia ser chamado a cada vez que, insatisfeito, se revoltava com a apatia a sua volta e, impossibilitado de se reunir às forças terroristas, recorria à pura e sincera irresponsabilidade.
Depois de mais alguns minutos de vagabundagem reflexiva pôde embarcar novamente em outro ônibus.
* * *
Destino alcançado. Uma hora e meia atrasado.
Pensava numa boa desculpa para fugir e pensar. Realmente não passava bem, efeito das noites mal dormidas, insônia, depressão e ansiedade.
Poderia ir ao médico e assim ocupar apenas duas horas do dia. Mas para quê? Não havia vantagem alguma em ser envenenado com algum neuroléptico ou com comprimidos para dormir. Bem, eles poderiam até dar um barato, mas (caralhos!), até a medicina é escrava deste mundo bravo e novo?
Munido de uma sensação terrível de tristeza cumprimentou o porteiro e subiu para o quarto andar do escritório.
Depois de quatro horas de papéis e de gente endividada pedindo conselhos iria almoçar. Trabalhava numa firma de cobrança, era parte da engrenagem e não havia outro modo mais imediato de pagar seu aluguel.
Seu amigo, Ricardo, sempre achou engraçada a forma por que ele se referia ao próprio trabalho. Costumava chamá-lo de comunista medroso, revolucionário de boutique. O que Ricardo não sabia é que ele levava a sério estas provocações. Realmente havia aceitado trabalhar ali por falta absoluta de opções mais compatíveis, mas subira rápido e devido a seu talento criativo o temporário tornou-se emprego.
Foi arrancado de sua papelada subitamente por Charlie, o office-boy-figura, que trazia um recado do chefe e um convite para mais uma de suas noitadas.
¾ Aí sangue, o BigBoss, ‘tá querendo levá um lero contigo... Ah! E hoje rola aquela reunião do samba.
¾ Porra! Todo dia?
¾ Hoje é sexta mané; fui.
Acenou para o elétrico boy e levantou. Nem se dera conta de que já era sexta.
“Quê diabos esse merda quer comigo?”
Subiu até a sala do chefe e quase vomitou em sua mesa quando o viu almoçando um surrado hambúrguer de Kombi. Não por causa do hambúrguer, mas por um asco súbito e inevitável que o atingira ao pensar que aquele careca ridículo e nada criativo conseguira uma estabilidade graças a abnegação quase inata dos imbecis e puxa-sacos.
¾ Paulo, meu amigo... Sei que você tem andado muito ocupado... Mas, é que a firma... Bem, você sabe... Bem... Confiamos em você para resolver um probleminha que tivemos em São Paulo. Como você morou lá, não é? Pendia a cabeça para o lado e gesticulava, falando inseguramente.
Ele apenas observava aquele ser desprezível que tinha medo de olhá-lo nos olhos diretamente e conservava sempre a cabeça baixa.
“Pulha, cabeça de merda! Devia fazer contigo o que fiz no ônibus hoje. Dar-te uma bordoada nas fuças e te dizer quem é que merece ter o cargo de chefe aqui”.
Secamente interrompeu:
¾ Me manda um memorando o.k. Eu vou.
E partiu, batendo a porta.
* * *
Psicanálise. É, talvez psicanálise desse jeito. Toda esta crise com relação a autoridade não passa de uma variante mal-disfarçada do complexo de Édipo. Mas Freud que se foda. O que ele quer é mudar esta porra de mundo e não ficar entendendo ou justificando. Mudar o mundo porra, não os canais da televisão.
Ficar em casa numa sexta à noite, relembrando um dia de cão, não lhe pareceu saudável. Olhou para o relógio de parede e decidiu que alguma bebida lhe faria mais bem do que esta letargia televisiva.
Partiu para o bar que Charlie indicara.
Não gostava nem um pouco de pagode. Apenas algumas bandas dos 70 faziam sua cabeça. Podia dizer que nem mesmo gostava de música, pois não a consumia como acreditava que os outros faziam. Contentava-se com sua irrisória coleção de fitas e sequer ligava o rádio. Nas festas, a não ser que a companhia fosse muito agradável, sentia-se deprimido por ter que aturar os sucessos atuais.
No caminho, ele ainda se questionou quanto à validade desta fuga. Era tarde demais. Antes que o bom senso o levasse a fugir, chegara ao local marcado.
Charlie já estava alegre, que é a forma mais simpática do bêbado. E, para sua surpresa, a roda de samba era um tributo ao Rio antigo e a seus compositores mais geniais.
O amigo o recebeu acaloradamente e pôs um copo em sua mão, apresentando-o às belas senhoras e aos sambistas presentes. Foi uma grata surpresa. Não esperava que Charlie tivesse bom gosto para música e pensava que o encontro terminasse se transformando numa sessão de tortura musical da famigerada bunda-music. Não pôde deixar de se auto-repreender por este gesto de preconceito.
Após alguns copos o abraço em Charlie o pôs em paz com sua consciência, ou melhor, pôs sua consciência a nocaute, pois lá estava ele, puxando o coro num Ari Barroso desafinado e tentando lembrar das letras de Paulinho da Viola, das quais sabia poucos refrães.
Um tapa certeiro dava conta do barulho.
Sentia que não iria levantar da cama. Seu estômago doía, sua cabeça rodava ou então era o contrário... Não importa. Não podia enfrentar o dia hoje.
Quando estava preste a se entregar ao mal-estar que o corrompia, dando-lhe o subsídio para escapar de sua malévola rotina, olhou desconfiado para seus pés e estranhamente assustado deu um pulo da cama. Teve um súbito medo de estar numa fábula de Kafka.
Comparar a si mesmo com um inseto abalara por demais o seu orgulho. E, como não poderia se esconder de suas obrigações transformando-se em barata, levantou-se finalmente, de abas caídas, impelido pelo remorso e não pelo senso de responsabilidade. Ainda imaginava como seria bom estar febril em frente a tevê, mas só podia dirigir-se resignado à pia do banheiro.
Queria morrer de repente, ali mesmo. Morrer numa falsa surpresa. Não morria porque era burro, pensava. Escovou os dentes raivosamente e olhou para o nada em frente ao espelho... Tornara-se tão cínico que era capaz de ignorar a si mesmo... Sua concentração estava apenas no gosto azedo de sua boca. Apagar este gosto azedo e as lembranças ruins, reescrever em hortelã pelo menos esta manhã.
Queria ter o poder traçar planos detalhados de ação futura. Eram os planos para comprar um carro usado, a tevê a cabo, arranjar uma mulherzinha no sábado, lavar a roupa domingo, ou de coisas menores, como cumprimentar o chefe e não xingar o porteiro, arrumar as meias, cortar o cabelo, as unhas. Acreditava que viveria melhor, como seus amigos, caso os tivesse bem esquematizados. Era uma pena que não pudesse começar agora. Não havia um ritual para eles em sua vida. Planos e ordem só em meio ao caos.
Seus “planos” o assaltavam no meio do sono, na ressaca, como uma lista de ordens desprovidas de libido, reafirmando sua impotência diante de um mundo pronto. Deus e o diabo conspiraram algo contra sua alma, era o que pensava. Resolveu, por isso, não obedecer a mais nada, divino ou profano, nem mesmo a seus desejos imediatos. Sentia que pessoas como ele não tinham o discernimento necessário para separar planos de deveres, desejos de algemas.
Começou a sorrir nervosamente, deixando que o sabonete se perdesse no ralo aberto. Finalmente percebera que, há dias, não conseguia realizar uma vírgula sequer de seus sonhos.
Sua rebeldia se voltara contra ele mesmo.
* * *
Fechar a porta e as janelas, ir até o ponto. Esquecer este pensar-pesar tão negativo.
Não achava normal sua indisposição para com tudo. O mundo já não o agradava de forma alguma e certamente suas mal aproveitadas noites de insônia seguidas por algumas horas de ônibus lotado e de trabalho chato para isso muito contribuíam. Estava entediado, cansado, exausto. Precisava alienar-se, fazer mais sexo ou acertar na loteria.
Ter um carro, uma casa maior ou uma dessas modelos famosas deitadas à sua espera. Para vivenciar isto é que valeria a pena traçar planos para a maioria dos homens de sua idade. Mas ele... Bem... Ele não sabia se sua preguiça ou sua revolta contribuíam para tal, mas negava-se terminantemente a participar dos sonhos desse bando pequeno burguês. Preferia o glamour da marginália ensandecida e virulenta. Sabia que à sua volta havia muito mais do que o que seu estômago ou sua luxúria podiam abarcar. Existiam as pessoas que também sonhavam como estes iludidos e que, no entanto, eram jogadas todo o dia, às cinco da matina ou até mais cedo, em direção ao ponto de ônibus do qual se aproximava agora somente para manter um mínimo de dignidade. Não deixaria que sua alma compactuasse com esse apanhado lunático de ideais-algemas.
Era mais um daqueles no qual a literatura fez mal. Acreditar no romance e na poesia substituía a religião, mas lhe imputava uma forma estranha de ascetismo e devoção. Deveria sempre escolher o contrário, o mais difícil, o mais vago e o mais marginal. Sentia-se sempre forçado a promover este sentimento de inconformismo e liberdade que achava típicos dos homens de artes e letras. Essa era a desculpa mais simpática para o seu humor inconstante e para seus atos impensados.
Sabia que não faria muitos seguidores entre seus companheiros de viagem. Arranjar-lhe-iam uma sigla qualquer e o colocariam no hospício como falso profeta. Seguramente era isto que o impedia de discursar ali mesmo como um pregador de praça. O falso profeta já residia nele e ele o conhecia bem. Era um personagem de sua alma que não respeitava mas lhe trazia um certo conforto em dias como esse.
Observava embasbacado os ônibus que passavam. Abarrotados como sempre a essa hora!
O seu teria de ser o mais vazio hoje. Deixou levianamente que alguns passassem durante longos minutos e então embarcou no mais vazio, que deveria ter umas cinqüenta pessoas pelo menos.
“Abandonai as esperanças todos vós que entrais”, pensou.
E lá estava ele, tranqüilo, chacoalhando como o falso malandro da música e observando o generoso decote da loira, quando a fumaça o perturbou. Queria conter a vontade de socar o indivíduo que, despreocupado com os cinqüenta passageiros, fumava junto à janela. Mas, como poderia ele conviver com tal absurdo? Em seu interior, vozes discursavam freneticamente sobre as causas do mau comportamento. Lembrou-se das mulheres grávidas que embarcavam no ônibus e nenhum marmanjo sequer levantava para dar o seu lugar.
Os ônibus eram uma das muitas fontes para o seu mau humor. Sempre havia algo além da já habitual hiper-lotação que o irritava neles: os péssimos motoristas, com a habilidade em fazer com que o carro freasse bruscamente, lançando seus passageiros em direção ao vidro da frente ou sobre o colo dos que estavam sentados; a má educação dos próprios passageiros, sua falta de solidariedade para com aqueles que notadamente não poderiam se equilibrar enquanto seguravam suas bolsas e para com idosos e deficientes. Fora vítima de todas as variantes possíveis, como a do marmanjo que abre as pernas como se estivesse em seu sofá e a da velhinha que interrompe sua leitura para pregar o Evangelho de cabo a rabo. E sua sorte é que era homem pois, se fosse mulher, já teria dado uma bordoada nos bolinadores de coletivo, figurinhas não raras e típicas daquele horário.
Dificilmente não tomava parte. Não poderia reclamar se não fizesse algo de concreto para mudar a situação, achava. Sempre tentou articular as soluções com boa educação, esclarecendo o que seria correto, achando que assim prestava um serviço àquele cidadão mal instruído. Cansara de avisar aos motoristas de sua responsabilidade quanto à vida dos passageiros e aos mal-educados que era sua obrigação zelar pelas grávidas, idosos e deficientes, além de ser lei e parará... Mas sua paciência estava chegando ao fim.
¾ O senhor podia fazer o favor de apagar o cigarro, disse calmamente.
O indivíduo tomou um susto ao ser cutucado. Fumava um mata-rato fumacento e soprava a fumaça pela janela; o que não adiantava, pois o cigarro fedia muito. Virou-se desleixadamente para nosso amigo e disse num tom jocoso.
¾ Pô, mermão. Eu num ‘tô te incomodando, ‘tô?
Ficou paralisado durante alguns segundos pensando no que fazer... Insistir na catequese do selvagem? Sentia os olhares sobre si e as vozes em seu interior começaram a se multiplicar. Rindo de sua intenção em preservar seus direitos? Olhou mais uma vez para a cara sorridente do negrão. Não iria discutir consigo mesmo. Outro tapa certeiro dava conta do recado.
¾ Esse cara é maluco.
¾ Bem feito pro fumante.
¾ Motorista, pára o carro.
A maldita confusão fez com que ele tivesse que saltar. Um atraso desnecessário e difícil de explicar. Iria andar pelo Flamengo até que sua mente se acalmasse novamente.
Não lhe interessava saber se as pessoas do ônibus entenderam sua atitude desesperada. Chegou até mesmo a duvidar da própria sanidade. Afinal, o cara era grande e ficou tão aturdido pela fuzarca dos outros passageiros que nem reagiu. Ou vai ver que era um bundão mesmo, pensando bem.
De qualquer forma, sua pequena aventura matinal o divertiu de uma forma mórbida e deu uma longa risada pensando em como Franco reagiria ao saber daquilo. O cigarro do cara saiu voando pela janela e dois passageiros surgiram do nada como turma-do-deixa-disso. Seguraram-no e foram rapidamente o empurrando em direção à porta sem maiores complicações. “Quem devia ter sido expulso do ônibus era ele porra!”, gritava para os “seguranças”. Mesmo assim foi lançado para fora.
Saltou no Flamengo e decidiu andar um pouco. Caiu em si e percebeu que realmente exagerara. Ficou lá, observando a baía e seus personagens para relaxar.
Irresponsável. Era isso que lhe sobrava. Era por isso que podia ser chamado a cada vez que, insatisfeito, se revoltava com a apatia a sua volta e, impossibilitado de se reunir às forças terroristas, recorria à pura e sincera irresponsabilidade.
Depois de mais alguns minutos de vagabundagem reflexiva pôde embarcar novamente em outro ônibus.
* * *
Destino alcançado. Uma hora e meia atrasado.
Pensava numa boa desculpa para fugir e pensar. Realmente não passava bem, efeito das noites mal dormidas, insônia, depressão e ansiedade.
Poderia ir ao médico e assim ocupar apenas duas horas do dia. Mas para quê? Não havia vantagem alguma em ser envenenado com algum neuroléptico ou com comprimidos para dormir. Bem, eles poderiam até dar um barato, mas (caralhos!), até a medicina é escrava deste mundo bravo e novo?
Munido de uma sensação terrível de tristeza cumprimentou o porteiro e subiu para o quarto andar do escritório.
Depois de quatro horas de papéis e de gente endividada pedindo conselhos iria almoçar. Trabalhava numa firma de cobrança, era parte da engrenagem e não havia outro modo mais imediato de pagar seu aluguel.
Seu amigo, Ricardo, sempre achou engraçada a forma por que ele se referia ao próprio trabalho. Costumava chamá-lo de comunista medroso, revolucionário de boutique. O que Ricardo não sabia é que ele levava a sério estas provocações. Realmente havia aceitado trabalhar ali por falta absoluta de opções mais compatíveis, mas subira rápido e devido a seu talento criativo o temporário tornou-se emprego.
Foi arrancado de sua papelada subitamente por Charlie, o office-boy-figura, que trazia um recado do chefe e um convite para mais uma de suas noitadas.
¾ Aí sangue, o BigBoss, ‘tá querendo levá um lero contigo... Ah! E hoje rola aquela reunião do samba.
¾ Porra! Todo dia?
¾ Hoje é sexta mané; fui.
Acenou para o elétrico boy e levantou. Nem se dera conta de que já era sexta.
“Quê diabos esse merda quer comigo?”
Subiu até a sala do chefe e quase vomitou em sua mesa quando o viu almoçando um surrado hambúrguer de Kombi. Não por causa do hambúrguer, mas por um asco súbito e inevitável que o atingira ao pensar que aquele careca ridículo e nada criativo conseguira uma estabilidade graças a abnegação quase inata dos imbecis e puxa-sacos.
¾ Paulo, meu amigo... Sei que você tem andado muito ocupado... Mas, é que a firma... Bem, você sabe... Bem... Confiamos em você para resolver um probleminha que tivemos em São Paulo. Como você morou lá, não é? Pendia a cabeça para o lado e gesticulava, falando inseguramente.
Ele apenas observava aquele ser desprezível que tinha medo de olhá-lo nos olhos diretamente e conservava sempre a cabeça baixa.
“Pulha, cabeça de merda! Devia fazer contigo o que fiz no ônibus hoje. Dar-te uma bordoada nas fuças e te dizer quem é que merece ter o cargo de chefe aqui”.
Secamente interrompeu:
¾ Me manda um memorando o.k. Eu vou.
E partiu, batendo a porta.
* * *
Psicanálise. É, talvez psicanálise desse jeito. Toda esta crise com relação a autoridade não passa de uma variante mal-disfarçada do complexo de Édipo. Mas Freud que se foda. O que ele quer é mudar esta porra de mundo e não ficar entendendo ou justificando. Mudar o mundo porra, não os canais da televisão.
Ficar em casa numa sexta à noite, relembrando um dia de cão, não lhe pareceu saudável. Olhou para o relógio de parede e decidiu que alguma bebida lhe faria mais bem do que esta letargia televisiva.
Partiu para o bar que Charlie indicara.
Não gostava nem um pouco de pagode. Apenas algumas bandas dos 70 faziam sua cabeça. Podia dizer que nem mesmo gostava de música, pois não a consumia como acreditava que os outros faziam. Contentava-se com sua irrisória coleção de fitas e sequer ligava o rádio. Nas festas, a não ser que a companhia fosse muito agradável, sentia-se deprimido por ter que aturar os sucessos atuais.
No caminho, ele ainda se questionou quanto à validade desta fuga. Era tarde demais. Antes que o bom senso o levasse a fugir, chegara ao local marcado.
Charlie já estava alegre, que é a forma mais simpática do bêbado. E, para sua surpresa, a roda de samba era um tributo ao Rio antigo e a seus compositores mais geniais.
O amigo o recebeu acaloradamente e pôs um copo em sua mão, apresentando-o às belas senhoras e aos sambistas presentes. Foi uma grata surpresa. Não esperava que Charlie tivesse bom gosto para música e pensava que o encontro terminasse se transformando numa sessão de tortura musical da famigerada bunda-music. Não pôde deixar de se auto-repreender por este gesto de preconceito.
Após alguns copos o abraço em Charlie o pôs em paz com sua consciência, ou melhor, pôs sua consciência a nocaute, pois lá estava ele, puxando o coro num Ari Barroso desafinado e tentando lembrar das letras de Paulinho da Viola, das quais sabia poucos refrães.