02 agosto 2009

Três histórias cariocas




Da separação entre corpo e alma

Paulo e Carla estavam sentados sobre as pedras do Arpoador, onde se refugiaram para olhar o pôr-do-sol após terem fumado seu costumeiro charro vespertino. Ele foi chegando sem muita cerimônia junto ao casal. Parou ali mesmo, observando despreocupadamente o horizonte.

Carla sorriu-lhe amigavelmente. Paulo não parecia muito à vontade. O homem voltou-se para eles e começou a falar num tom de voz extremamente sereno, sendo impossível escapar de suas palavras.

_ Sabe, para mim o ser humano é essencialmente guiado por seus instintos básicos... Nada mais que isso...

¾ ???

¾ Como assim, meu irmão? Disse Paulo franzindo o rosto.

¾ Que papo louco é esse?

¾ Não... Percebam ...

Paulo virou-se para Carla com deboche:

¾ Lá vem...

¾ ... Nós temos uma pulsão instintiva básica, comum ao verme e a planta, meus amigos. Uma força que nos impulsiona o espírito e faz com que nosso corpo se organize. Essa é a força vital, que não necessariamente tem uma finalidade...

¾ Ih! Esse cara é maluco ...

¾ Cala a boca, Paulo.

¾ ... Vivemos burramente para justificar instintos inatos. Tentamos racionalizar, submetemos as tendências naturais ao crivo da razão mas, no entanto, apenas damos a estes impulsos uma hierarquia, pensando organizar nossas vidas sob um plano que nada mais é do que um arquétipo de nossa felicidade. Fazemos isto para jogar um véu sobre nossa verdadeira natureza.

¾ Uau! Só entendi metade do que você quis dizer mas achei lindo.

¾ Você está louca, Carla! Esse papo é extremamente reducionista. Como explicar a liberdade de nossa vontade, nosso livre-arbítrio? Não somos teleguiados por instintos elementares.

¾ Mas, isto faz sentido, ora bolas.

¾ ...

¾ Nosso corpo é a morada de todas as nossas faculdades e de nosso potencial em tirar da vida aquilo que mais nos apraz. O que você vê como liberdade pode ser apenas uma incapacidade de enxergar além do aquário de escolhas em que vivemos...

¾ Esse papo ‘tá muito louco, muito louco... Sua filosofia é certamente devido a tendências genéticas que possibilitaram que seu fígado digerisse melhor o THC do que eu.

O estranho sorriu e continuou falando:

¾ Não, vocês não compreenderam completamente o meu ponto de vista. Eu nada sei sobre os genes ou sobre o fígado para afirmar que tomamos uma decisão baseada neles. Estou tratando de almas, motivações comuns a todos...

¾ Estamos ouvindo.

¾ Pensar escolher livremente é muito comum em nossa sociedade. Para muitos, nos nossos tempos, afirmar que somos livres totalmente é um ato-reflexo, posto que devemos defender nosso amor-próprio, nos auto-afirmando. Mas, como sabemos todos, só podemos escolher o que sentimos ou conhecemos. Quando falamos de liberdade temos que nos referir sempre ao seu aspecto real, ligado ao conhecimento e reflexão do conjunto de escolhas possíveis. Os caminhos da vida seguem uma não-lógica, com elementos históricos e inventados; entre o que não é, o que é e o que pode ser. Afirmar a liberdade absoluta não me dá nenhuma segurança pois, até hoje, não me responderam a uma pergunta simples: o que, oculto em mim, escolhe o caminho e lhe dá finalidade?

¾ Falou, guru. Se você refletisse a respeito da natureza da vontade tudo bem, mas seu argumento sobre liberdade de escolha carece de fundamentos pois você se esquece de algo: a estrutura social.

¾ Como assim?

¾ Ora, a sociedade ensina aos homens valores éticos e religiosos, científicos, morais, filosóficos... Tem sido assim em nossa civilização ou nos índios do Xingu. A percepção do mundo que possuímos é uma coisa individual. Mas mesmo essa percepção é construída, baseada na interação do homem com o meio social. Esse papo de escolha individual, liberdade individual é pura balela. As coisas se movem apesar de nossa vontade conspirar contra esse movimento algumas vezes. Possuímos livre-arbítrio mas não possuímos ainda o dom de adequar nosso mundo a nossos desejos. O que ocorre é o inverso. Se você busca uma origem das escolhas deve confrontar o que vemos e conscientemente desejamos com um inconsciente pessoal que também deseja.

¾ A estrutura social é dada pela forma com que os homens aceitam a imposição de um líder, seja espiritual ou republicano, e que dita as normas. Na raiz disso estão as famílias, unidades nucleares de qualquer sociedade e que administram a influência, em uma instância imediata, do conhecimento comum, o social, sobre o indivíduo. Além disso, há a escola e as religiões, amigos e preconceitos adquiridos ao longo da vida.

“É impossível determinar as aptidões de alguém unicamente a partir da simples análise de seu meio. Podemos ter uma idéia do tamanho de seu aquário, como diz Carla. Mas mesmo quando todos os elementos externos se parecem, os movimentos internos do ser humano vão se organizar de uma maneira imprevisível.”

¾ Logo, a raiz de tudo está no sentimento que o mundo provoca no homem.

¾ Sim, Carla. Mas eu vou mais longe: o sentimento que o homem quer provocar no mundo é que o torna distinto.

Paulo começava a se sentir ameaçado pelas palavras daquele guru neo-hippie, que, a seu ver, já ganhava a simpatia de Carla com seu palavreado holista. Ele sentia que aquele maluco estava apenas enrolando, se utilizando de suas afirmações para dar seqüência a seu palavrório.

¾ Devagar, de-va-gar! Tentou, inutilmente Paulo.

Ele, no entanto, continuava.

¾ O homem não obedece simplesmente aos estímulos do meio. Há um germe que o faz perseguir coisas novas, emoções inéditas. Esta é a força vital e a pulsão de que havia falado. Ela pode ser fruto de alguma programação do DNA, algo externo a nós ou uma simples manifestação de nossa capacidade de pensar.

Muitos acreditam que esse esforço para fora de si que nossa alma possui é fruto de uma energia externa a nós, um espírito provindo de alguma dimensão divina com finalidades a serem trabalhadas. Outros encaram a libido como matriz dessa energia, como gostam de pensar os cientistas. Gostaria muito de saber o que dá origem a esse impulso da alma, a origem da vontade.

Paulo resolve reagir aos argumentos do guru.

¾ O que você fala parece uma esculhambação da descrição psicanalítica e da filosófica, que se baseiam na história do homem e na evolução da sua percepção de seu papel no mundo.

¾ Sim, conheço esta descrição...

¾ Se você a conhece já percebeu que está em luta com o seu inconsciente, tentando extrair de seu mundo escondido algum sentido. O grande lance é poder seguir um caminho que nos deixe com um leque de opções bem variado na vida consciente. Desse modo, se respeitarmos os elementos que vivem em nosso subconsciente poderemos fazer o jogo das paixões mais facilmente.

“Os desejos se realizam através do corpo assim como os sentidos que nos foram dados. O que percebemos está somente condicionado às características materiais deste corpo. Existimos, para nós mesmos, como signo destes sentidos. Sentimos as coisas, temos idéias sobre elas e estas idéias podem se mover alheias à nossa vontade. O mundo, para o homem, passa a ter então duas dimensões bem perturbadoras: a dimensão do corpo, feito de átomos e a do espírito, também feito de átomos, eu acredito, mas dotado de vontade.”

¾ ...?

Paulo, sentindo que conseguira impor seu argumento, continua.

¾ As coisas se movimentam no mundo real e no mundo interno que o apreende. Nosso espírito não só vê as propriedades do real mas lança-se sobre elas e as rearranja livremente. Podemos assim formar ciência das regularidades dos fenômenos e formular conjecturas acerca do movimento do mundo. Essa é a essência do poder do consciente sobre as coisas que nos rodeiam. Construímos, numa alegoria que parece o mundo platônico às avessas, uma dimensão espiritual, intangível, das coisas, dentro de nossas cabeças.

“Mas, infelizmente, não dominamos, com os signos, a sensação que o mundo nos provoca. Isso, a partir do momento em que esses movimentos da realidade não nos apontam com clareza as respostas para angústias com relação a coisas que sentimos e sabemos de nossa vida...”

¾ Apreendemos do mundo elementos que nos são dados pela experiência direta e pelas aptidões inatas. Porém, aprendemos também coisas que nos são obscuras e veladas. Diz o estranho, feliz com o brilhante insight de Paulo.

¾ Sim, compreendo o que Paulo trata como mistérios: o nascimento, o amor, o medo da morte...

¾ Isso mesmo, Carla. Veja a morte, por exemplo. Cada povo tem sua forma de encarar o fim inevitável e isso orienta boa parte do pensamento religioso, formando doutrinas de controle de conduta. A finalidade das diferentes religiões obedece a um corpo de proposições nas quais a lógica faz pouca diferença. São sistemas orientados pela história, tradição e família, pelo medo ou pela busca da transcendência pura e simplesmente.

“Nossa força consciente dosa o efeito dos signos submersos sobre nós. A realização dessa pulsão de que nosso amigo fala é a demonstração de amor à vida de que precisamos para mudar as coisas. Ela não tem finalidade realmente, mas observa os signos que a circundam, apropriando-se deles, modificando-os e crescendo em significado de acordo com a sensibilidade individual.

“Não há como afirmar se possuímos uma herança pré-programada de símbolos, algo que orienta parte das respostas de nosso inconsciente aos estímulos do meio. Mas, mesmo que a tivéssemos, esta não seria a causa motora de nossa vontade. O consciente não se encontra subordinado aos símbolos submersos, tem com eles uma relação compensatória, dialética, e traça o melhor caminho para manter a unidade da alma.

“Mas, voltando a nossa vaca fria, eu não acredito em submissão do consciente a instintos básicos ou a qualquer lógica autônoma do subconsciente. O homem é um todo, composto de consciente, inconsciente e matéria. Uma coisa não existe sem a outra, como numa trindade mundana.”

Paulo parecia feliz com sua dissertação mas Carla não demorou a inquirir sua confiança.

¾ Só que ainda não ficou claro o que vocês querem demonstrar. Vamos retomar uma linha de pensamento.... Paulo quase teve um enfarto.

¾ A linguagem pode ser considerada simplesmente um instrumento de adaptação do homem ao seu meio e não um motor. Se admitimos um subconsciente admitimos um segundo plano de nossa existência. Esse seu papo de signo não vale para essa dimensão. O estado desperto se orienta sob as leis mecânicas e positivas da experiência e linguagem mas, do lado escuro, emergem as energias latentes dos signos em hibernação, das sensações originais individuais.”

¾ Certamente. O subconsciente é a apropriação primitiva da experiência e onde se movimentam os nossos instintos. No turbilhão de imagens do imo é que se define a potencialidade do consciente... Diz o estranho, ao qual Paulo responde prontamente.

¾ Discordo. Na introspecção e assimilação é que reside a força da consciência sobre os fatos da vida. A sensibilidade do que é a partícula organizadora no ser humano acerca do seu íntimo é que significa poder. O sucesso do indivíduo depende do equilíbrio entre o ser e o querer ser.

¾ Sem motivação não há um querer ser.(...) Mas voltamos ao meu ponto: a consciência nos é dada pela interação com o mundo dos signos e o subconsciente pelo movimento das paixões; ambos crescem com a experiência, sendo o equilíbrio destes universos a chave para nos compreendermos. Mas onde reside a energia que os impulsiona então, meus amigos filósofos?

¾ Sua pergunta mais difícil, com certeza?

¾ Se ela reside no corpo e é material deve ser o cérebro. Mas mesmo o cérebro é um enigma onde as reações químicas que produzem a idéia não mostram as relações de causalidade que buscamos: a origem da vontade.

¾ O cérebro me parece mais um instrumento da vontade do que sua sede propriamente dita, Paulo.

¾ A alma mora em um lugar distante...

¾ Onde? No céu?

Paulo balançava a cabeça desolado.

¾ E se nossa natureza tem aspectos que nos são desconhecidos? Se somos sensíveis a forças sutis que orientam nossa individualidade em direção a algo? Se há uma lei para nós do mesmo modo que há para a órbita dos planetas e para o nascimento das estrelas?

¾ Mas Carla, e se nossa natureza não diferir da natureza dos outros seres vivos? Poderíamos afirmar que nossa consciência não é apenas um órgão extracorpóreo que serve a um princípio simples: sobreviver, reproduzir, morrer?

¾ Aí, tanto faz onde mora está força que nos move. Seríamos como vírus com alma, nada especiais, pelo contrário, amaldiçoados com o peso de nosso saber, cônscios de nossa impermanência e perdidos com relação a nosso papel nesta existência.

¾ Por que não admitir esta hipótese ao invés de inventar soluções mirabolantes?

¾ Talvez porque esta hipótese retira a força de nossa pulsão para a vida.

¾ Se a alma é fruto do mesmo movimento que originou o vírus? Seria a programação de DNA uma pista sobre a morada da vontade primal?

¾ Mas o DNA não passa da fôrma com que fomos construídos.

¾ Essa fôrma pode conter nosso segredo mas não nosso destino. Aí, podemos apontar para o signo como manifestação primitiva da vontade. Corremos atrás de algo que nos é geneticamente programado. No vírus de forma direta e, em nós, de uma forma tão complexa que possuímos mais neurônios que todos os outros seres sobre a terra. Para comunicar à totalidade de nossos instintos a necessidade de realizar esta missão, que não necessariamente difere da do germe e do vírus, surgem o signo, a felicidade, a busca do prazer.

¾ Mas então, o que você raciocina é que a alma e o corpo estão atrelados?

¾ Pelo menos não há razão para que eu possa afirmar que a alma está distante do corpo. A consciência pode não passar de um manifestação da ordem natural.

¾ Aí, meu amigo, acho que o medo da morte seria a chave para compreender essa lógica da vontade que você tenta expressar. A manifestação humana é a negação dessa impermanência, é o querer estar no mundo. Não é um instinto tão básico como você imagina.

¾ Concordo com Paulo. A força da vontade está num universo maior do que a dos hormônios e feixe de células. As sensações da alma é que importam. Com ela construímos finalidades sem que seja necessária a intervenção de elementos fantásticos.

¾ Desconhecidos sim, fantásticos talvez.

¾ (...?...)

¾ Creio que vocês me iluminaram bastante com estas impressões... Na verdade, o que eu falava com meu psicanalista era justamente sobre o que seria a mola desses nossos movimentos internos da alma.

¾ E, por acaso, chegaste a alguma conclusão?

¾ Na verdade, intuí o que poderia ser uma das chaves a este mistério do querer estar no mundo. Vejo que vocês são um casal bonito e inteligente, abertos a discussões profundas e polêmicas...

¾ Vamos lá, fala logo. Sem embromação.

¾ Bem, não consigo achar que seja algo diferente deste nosso duelo de percepção acerca das coisas, este nosso duelo particular, que não teve outro objetivo senão o de impressionar a bela Carla e a ela de nos impressionar. Em suma, essa vontade de maximizar o nosso harém me parece realmente a única boa causa de estarmos vivos.

E o homem partiu rapidamente em direção à praça, dando sonoras gargalhadas.



* * *



¾ Carla...

¾ Sim.

¾ Me lembre de nunca mais filosofar com um estranho quando você estiver de biquíni, o.k..



Da Nights




Queria sair, não ficar ali, dando sopa. Johnny Boy acenou para mim com seu sorriso de sátiro boêmio e apontou para a mulheres da mesa ao lado.

¾Travei conhecimentos com as cabrochas, my friend. Vamos nessa. Elas nos esperam lá no Cinco e, de lá... cabe a nós decidir, dizia ele esfregando as mãos espalmadas uma sobre a outra, já comemorando o que, em sua interpretação, era um sinal verde para seu scholong.

Estivéramos a tarde toda naquele boteco conversando com Rose e Jairo sobre cinema e sobre os planos comuns que mantínhamos de dominar Hollywood com a realidade urbano-carnavalesca de nossa cidade. Estávamos nos despedindo agora e não esperava enfrentar o sereno naquela noite. Mas Johnny Boy era um boêmio profissional e não deixaria o final de semana começar sem uma bela noitada.

Fui com ele, mesmo sabendo que as garotas nem tinham conhecimento de minha futura presença. Achei melhor observar a febre da selva que acometia meu amigo e, além do mais, o Posto Cinco abrigaria a fina flor dos ociosos peripatéticos naquela sexta. Embarcamos no carro e partimos para orla.

Não deu outra. Antes de estacionarmos, passamos por Carlos French e seu irmão Tony se dirigindo ao famigerado point, o Sindicato do Chopp, ao lado da Galeria Alaska.

Sentamos à mesa esperando a turma. Johnny mal podia conter sua ansiedade e me descrevia minúcias de suas estratégias de ataque, que só dependeriam da ordem com que elas se sentassem à mesa. Eu não tinha metade de sua disposição e de seu arsenal de Kao’s. Johnny, no entanto, queria quase sempre me convencer que se apaixonava facilmente e não eram os instintos de seu baixo-ventre que o dominavam nessas horas. Era um incansável caçador de festas, adequava-se camaleonicamente bem a cada uma delas, mergulhar no jogo incerto da noite parecia diverti-lo bem mais do que as pistas de dança. Tomamos umas duas cervejas antes das gatas chegarem.

¾ Como você conheceu essas mulheres, cara?

¾ Depois eu te conto, véio. Elas ‘tão chegando aí.

¾ Você não dá mole, quatro de uma tacada!

¾ É hoje, mermão. Não amarela que tudo dá certo. Eu só sei que elas não são daqui e estão afim de zoar...

Estávamos com sorte aquela noite. Eram quatro divas fantásticas e senti-me logo atraído por Cláudia, uma bela mulata com sorriso lunar e uns olhos indefinidos cuja cor era o complemento perfeito para o formato de seu rosto. Puro suco.

Na outra mesa, Carlos gesticulava doidamente enquanto conversava com seu irmão e mais duas garotas que não consegui ver direito.

Depois que nos apresentamos à moda carioca, elas se distribuíram nas cadeiras e pedimos mais cervejas. Engatei no papo com a mulata e com a loira cujo decote me perturbou a noite toda. Regina. Seus peitos eram lindos, duas peças raras, trêfegos, de bicos pequenos espetando a blusa... um espetáculo.

Evitava falar muito e apenas observava o movimento frenético do bar, enquanto ouvia aquelas lindas gatas falando sobre os lugares que freqüentavam e o tipo de festas que curtiam. French já havia nos avistado e me fez um sinal. Chamei-o então para nossa mesa.

Via que Johnny Boy estava mais feliz do que pinto no lixo. O sorriso não saía de seu rosto. Era como se tivesse tomado um doce (e talvez tivesse tomado mesmo). Começou a gargalhar e suas mãos já enlaçavam a vítima, Marta, uma morena esguia de olhos arregalados, uma carinha linda e debochada com duas esmeraldas incrustadas. A gata estava à vontade, Johnny era um gentleman apesar do destempero, e assim, abraçado a moça, continuou o parlatório sobre a imbecilidade de algum programa de tevê.

Contagiei-me com sua verve descontrolada e as garotas estavam se amarrando naquela confusão fervilhante de idéias e coisas banais que falávamos. Carlos French se aproximou para cumprimentar-nos e mandou o recado: Havia uma festa rolando na casa de um amigo seu ali em Copa.

¾ Pô, cara, vai ser o maior barato. A galera organizou uma espécie de sarau na cobertura e a banda do Petrus Trumpet vai mandar um som...

Nem precisei me preocupar com a animação das meninas.

¾ Uma festa com banda?! Vamos ver então, embalou Perla, sentada à minha frente.

As garotas logo se animaram. Realmente a noite, que não prometia muito no início, estava começando a se reconfigurar: gatas lindas, um som maneiro e um lugar viagem. Johnny Boy piscou-me o olho maliciosamente e estalou os dedos: Irrah! O sinal da esbórnia. Todas as chances a nosso favor, fomos todos a casa onde rolava a festa.

Chegamos com o som da banda comendo solto. Zilhões de latas espalhadas pela cobertura e alguns gatos pingados. Eram duas e meia da matina e grande parte do pessoal debandara em busca de outras possíveis nights.

Marcus, o anfitrião, veio falar conosco. Era uma figura tão elétrica quanto French. Estava com uma roupa andina, de manta inclusive, e seus olhos estavam super arregalados, dois faróis vermelhos iluminando a noite. Logo de cara simpatizou conosco e nos levou até a cozinha e às cervejas. Enquanto isso tagarelávamos sobre o som do trompete, do swinging blues e de outros sons que a banda mandava.

Aproximamo-nos do palco para curtir o enlevo proporcionado pelo álcool. Rituais tribais eram invocados para justificar o comportamento dessa trupe de índios ciganos. Dançávamos e fumávamos a toda velocidade, Tony acompanhava o trompete com mímicas e Marcus brincava com as gatas numa dança estranha. French dá um pulo e sobe ao palco tentando improvisar um blues no microfone. Olho para as garotas. Elas estão à vontade com esse bando de loucos récem-encontrados.

Vou até a cozinha buscar mais cervejas. Regina vai comigo. Estou realmente feliz de poder curtir esta noite e dou uma bela gargalhada. Quando faço isso, sei que a vida vale a pena. Chego a me envergonhar um pouco dessa demonstração dionisíaca, mas Regina me olha com um sorriso de satisfação como se tivesse entendido o que se passa comigo neste instante... Ou vai ver que era apenas o meu interesse pelos seus pensamentos surgindo lentamente...

Levamos as latas até nossos amigos e sinto que seus olhos me perseguem. O álcool deixa a gente sensível e sem vergonha em proporções estranhas. Sua outra amiga, Cláudia, nem me deu bola. Tony e Marcus cercaram a musa de ébano sem deixar espaço e confesso que isto me deixou um tanto apreensivo. Mas Regina encosta-se em mim e pede para que dancemos. Deixo o coração fazer cento e oitenta graus. Resolvo então mostrar meus dotes de baile.

Johnny Boy já se atracara loucamente na frente do palco com duas das garotas que estavam conosco e Regina se empolgara com a idéia. Quando me dei conta estávamos dançando e nos beijando ao mesmo tempo ao som do The Who. Pareceu mágico. Fomos à sacada para nos curtirmos e ainda observar a festa.

French e Tony dançavam freneticamente com Cláudia e Marcus. Carlos tem um jeitão de dançar muito divertido e mexia a pélvis num rebolado gaulês-no-liquidificador hilário. Tony contentava-se em marcar a batida da bateria com o quicar de seu corpo, não menos desengonçado que o irmão. Observo-os sentado no parapeito abraçado à Regina. Eis que Julien aparece do nada entre eles, cochicha com Johnny e as meninas e depois com Marcus. De repente, somem por quinze minutos... e voltam possuídos pela caspa do diabo.

Agora meus amigos estavam mais agitados do que nunca. Olhos vidrados e uma tagarelice que conhecia bem. Essa é a onda do bright, você se sente mais afirmativo, seguro de si e do que pensa, desanda a falar de tudo que se passa na sua mente e curiosamente relaxa enquanto seus músculos brigam para manter seus dentes num sorriso diabólico. A sensação de poder é que ratifica os avisos do perigo quanto ao vício. Preferia decolar numa velocidade mais lenta a um estágio de consciência onde a interação com os meus amigos não passasse pela paranóia, efeito colateral direto desse lançamento a jato do teco ao inconsciente. Era com certeza uma subida maior e mais vertiginosa do que qualquer outra substância, mas sua queda era também a mais rápida. Com certeza, seu uso devia se restringir a algum ritual de concentração e autoconhecimento sério e não ao embalo das nights, que tornava o canudo necessário a cada quinze minutos. Realmente não sentia vontade de participar dessa furada esta noite.

A gata sacou que eu estava meio bolado e me chamou para fumar um charro na praia. Avisei o Johnny que iríamos dar um rolé e parti com a pequena para a orla. Senti-me super à vontade com ela e quase adormeci ali na areia, deitado sobre sus lindas coxas. Ela exalava um cheiro adocicado e sugava minha língua com sofreguidão. Queria arrastá-la para minha casa mas Regina teria que visitar os pais em Friburgo e não poderia ser seqüestrada naquele sábado que nascia.

Vimos a luz se derramando lentamente sobre o Rio de Janeiro com o púrpura da aurora coroando os morros do Pão de Açúcar. Ia ser um dia fantástico, mas não para nós dois infelizmente. Trocamos nossos telefones, mais alguns beijos e voltamos para procurar os sobreviventes da festa.

Ao chegarmos, dois carros de polícia parados em frente ao prédio. Havia um certo movimento estranho ali e ambos ficamos cabreiros. Alguém da festa perdeu a cabeça; perturbou um vizinho que chamou a polícia e foi o que deu para sacar. Estávamos preocupados com nossos amigos e a probabilidade de que houvesse alguma merda rolando era muito forte.

Mal tive tempo de refletir sobre o fato naquele instante. Uma buzinada.

¾ Ser das treva-aas! Vamô embora-aa! Gritos conhecidos me invocavam.

Virei-me e vi meus amigos no carro de Johnny Boy, Marcus inclusive, acenando para nós com a cara mais lavada do planeta, como crianças que escapam da surra dos pais.

¾ Que quê houve galera?

¾ Aí cara, vocês têm sexto sentido; falava French desarticuladamente, o Migas perdeu a linha... Ainda bem que vocês saíram...

¾ A verdade é que eu vi você sair e saquei que algo ia dar errado, mermão. Completou Johnny, nos contando detalhes do que Migas havia feito e de como eles escaparam pelas escadas.

¾ Os caras entraram de bicho na cobertura, nunca vi isso, reclamava Marcus.

¾ Copa não tem mais elite, galera. O tratamento é o mesmo do morro, disse French, mais-prá-lá-do-que-pra-cá, mas sempre com uma pérola a dizer.

¾ Ainda bem que “vocês” saíram, retruquei.

¾ E as meninas? Perguntou Regina.

¾ Aí loirinha, suas parceiras dançaram feio. Foram todas pegas com o Julien, que ‘tava carregado de razões para a prisão. Disse Johnny Boy, puto da vida.

¾ Até a Marta? Que ‘tava contigo?

Johnny moveu a cabeça afirmativamente.

¾ O jeito é a gente cair o fora daqui. Quando você chegar em casa, você avisa os pais destas loucas, mandou Tony, tão bêbado quanto French.

O pior é que ele estava certo. A polícia iria “conversar” com Marcus e com quem estivesse com ele. Regina, no entanto, estava muito agitada.

¾ Mas os pais delas vão ficar loucos... Meu pai vai pirar se souber...

¾ Regina, se acalme. Aqui não resolveremos nada e podemos nos complicar. Com paciência tudo se resolve.

Eu estava disposto a me esquivar de qualquer perrengue que surgisse. Meu bom anjo não estava para caridade naquele dia embora também me sentisse responsável pelas garotas. Graças a deus, Regina caiu em si e partiu conosco, mesmo inconformada com o espírito deixa-pra-amanhã da galera.

Não gostava de viver este tipo de situação mas, infelizmente, fugas da polícia eram quase uma constante para nós. E que belo bando de marginais nós éramos, espremidos dentro de um Kadette, desarmados e confusos. Dois irmãos bêbados, uma gatinha de Friburgo, um poeta sátiro, um fudido privilegiado e eu, o mais confuso de todos. Com certeza nosso único delito era o de professar a crença nos rituais bacantes e o de conspirar para que uma versão brasileira do plano de Leary desse certo: jogar LSD no reservatório carioca de água.

Não podia aceitar o fato de que nós éramos maus exemplos. Desqualificados em nossas crenças, mal interpretados pelas velhas gerações e considerados como alienados e vagabundos. Porra! A gente trabalhava também; nada é de graça! Nenhuma das pessoas que nos criticava sabia que, no fundo, a divergência era simples: estávamos cagando pro status quo, pro quid pro quod e pra todas as convenções simplesmente. Nossas reuniões eram a válvula de escape, uma tentativa de esquecer as merdas que nos empurravam no dia-a-dia. Um grito de socorro e um basta à moral hipócrita dos bons costumes.

Deus! Eu também estava completamente bêbado agora. E delirando discursos contra o sistema balançando os braços no espaço exíguo do carro para reforçar minha indignação. Marcus e Johnny se escangalhavam de rir. Mais um motivo pra não me levar a sério demais. Rio com eles abundantemente.

Johnny nos deixou em casa e levou consigo a trupe. Prometi a Regina que à tarde veríamos o que poderia ser feito. Às sete da matina meu sono me venceu facilmente. Adormeci no sofá-cama antes mesmo de tentar alguma coisa com ela.



* * *



O telefone toca às duas. Era Carlos avisando que dera um pulo na DP . Tudo acabou em pizza, as garotas foram liberadas e Migas também.

¾ Os caras só achacaram um pouco a galera. Quando apareci lá com meu tio eles já tinham sido liberados.

Nem sabia que Carlos tinha um tio policial... Bem, o pior não aconteceu.

¾ Será que o Marcus pode voltar na boa?

¾ Os caras não acharam nada no apê. O Julien ‘tava travadaço mas deu um jeito de engolir um papel... Deve estar morrendo de medo a uma hora dessas. Literalmente, se borrando de medo.

¾ Também, o que quê o Migas foi fazer com um violão na porta do vizinho?

¾ Ih! Esquece isso, ‘tava todo mundo crazy... E a gatinha, mané?

Me toquei que Regina ainda dormia em minha cama. Deus do céu, era um anjo em meu apê. Ela havia pego uma de minhas camisas e adormecera seminua naquele dia quente sob o ventilador de teto ligado... Respondi enquanto a contemplava.

¾ ‘Tá aqui dormindo, malandragem!

¾ Vê lá, hein! Ela só tem dezoito aninhos. Disse sarcasticamente, não vá fazer mal a moça senão você pode não agüentar o tranco.

¾ Falou, French. Depois eu passo em tua casa pra trocar uma idéia.

Desliguei o fone e parei na porta do quarto observando Regina. Resolvi então fazer algo para comermos.

Enquanto estava na cozinha ela acordara e fora ao banheiro. Ouvi o chuveiro ligando e tentava conter a vontade de invadir o box agarrando-a ali mesmo. Decidi agir com paciência.

Terminei de fritar os omeletes e a gata entrou cozinha a dentro com um sorriso lindo nos lábios e sedenta de amor e carícias. Que maravilha!

Estava enrolada na toalha, me beijou longamente, colocou sua mão sobre minha calça e apertou forte. O sinal verde que esperava chegou finalmente. Não queria perder nenhum centímetro daquela mulher.

Despi-me desajeitado. Chupava seus seios como se quisesse ser sufocado por eles. Mãos livres sobre sua bunda, dedos ávidos por seus fluidos. Ela tinha um gemido lindo, deitando por sobre a mesa e implorando para que beijasse sua vagina. Sentou-se em minha boca rebolando freneticamente. Eu estava louco de tesão e parava para observar aquela pequena ninfa várias vezes sobre mim. Transamos na cadeira da cozinha, fomos para o quarto e caímos extasiados na cama após algumas horas deliciosas.



* * *



Seis da tarde. Regina se despede de mim e promete ligar. Ela era o tipo de garota com quem a gente faz amor e quer ficar abraçado. Vou com ela até o ponto de ônibus e decido dar uma passada no nove para ver o sol se pôr.

A noite até que foi legal. Sinto-me bem apesar do final tumultuado. Poder curtir o nove, depois destas aventuras, é extremamente gratificante ao fim do dia. Sento-me relaxado em suas areias com minha garrafinha de água a tiracolo.

Ao chegar em Ipanema ainda conservava uma pequena rusga com relação a Zona Sul. Mas bastava me abstrair de algumas das figuras locais, como os pittbulls e as patricinhas, e tudo se arranjava bem.







Asfalto Voragem


Quase chegou a esboçar um pensamento a respeito da idiotice do mundo... Foi quando o despertador começou a berrar.

Um tapa certeiro dava conta do barulho.

Sentia que não iria levantar da cama. Seu estômago doía, sua cabeça rodava ou então era o contrário... Não importa. Não podia enfrentar o dia hoje.

Quando estava preste a se entregar ao mal-estar que o corrompia, dando-lhe o subsídio para escapar de sua malévola rotina, olhou desconfiado para seus pés e estranhamente assustado deu um pulo da cama. Teve um súbito medo de estar numa fábula de Kafka.

Comparar a si mesmo com um inseto abalara por demais o seu orgulho. E, como não poderia se esconder de suas obrigações transformando-se em barata, levantou-se finalmente, de abas caídas, impelido pelo remorso e não pelo senso de responsabilidade. Ainda imaginava como seria bom estar febril em frente a tevê, mas só podia dirigir-se resignado à pia do banheiro.

Queria morrer de repente, ali mesmo. Morrer numa falsa surpresa. Não morria porque era burro, pensava. Escovou os dentes raivosamente e olhou para o nada em frente ao espelho... Tornara-se tão cínico que era capaz de ignorar a si mesmo... Sua concentração estava apenas no gosto azedo de sua boca. Apagar este gosto azedo e as lembranças ruins, reescrever em hortelã pelo menos esta manhã.

Queria ter o poder traçar planos detalhados de ação futura. Eram os planos para comprar um carro usado, a tevê a cabo, arranjar uma mulherzinha no sábado, lavar a roupa domingo, ou de coisas menores, como cumprimentar o chefe e não xingar o porteiro, arrumar as meias, cortar o cabelo, as unhas. Acreditava que viveria melhor, como seus amigos, caso os tivesse bem esquematizados. Era uma pena que não pudesse começar agora. Não havia um ritual para eles em sua vida. Planos e ordem só em meio ao caos.

Seus “planos” o assaltavam no meio do sono, na ressaca, como uma lista de ordens desprovidas de libido, reafirmando sua impotência diante de um mundo pronto. Deus e o diabo conspiraram algo contra sua alma, era o que pensava. Resolveu, por isso, não obedecer a mais nada, divino ou profano, nem mesmo a seus desejos imediatos. Sentia que pessoas como ele não tinham o discernimento necessário para separar planos de deveres, desejos de algemas.

Começou a sorrir nervosamente, deixando que o sabonete se perdesse no ralo aberto. Finalmente percebera que, há dias, não conseguia realizar uma vírgula sequer de seus sonhos.

Sua rebeldia se voltara contra ele mesmo.

* * *

Fechar a porta e as janelas, ir até o ponto. Esquecer este pensar-pesar tão negativo.

Não achava normal sua indisposição para com tudo. O mundo já não o agradava de forma alguma e certamente suas mal aproveitadas noites de insônia seguidas por algumas horas de ônibus lotado e de trabalho chato para isso muito contribuíam. Estava entediado, cansado, exausto. Precisava alienar-se, fazer mais sexo ou acertar na loteria.

Ter um carro, uma casa maior ou uma dessas modelos famosas deitadas à sua espera. Para vivenciar isto é que valeria a pena traçar planos para a maioria dos homens de sua idade. Mas ele... Bem... Ele não sabia se sua preguiça ou sua revolta contribuíam para tal, mas negava-se terminantemente a participar dos sonhos desse bando pequeno burguês. Preferia o glamour da marginália ensandecida e virulenta. Sabia que à sua volta havia muito mais do que o que seu estômago ou sua luxúria podiam abarcar. Existiam as pessoas que também sonhavam como estes iludidos e que, no entanto, eram jogadas todo o dia, às cinco da matina ou até mais cedo, em direção ao ponto de ônibus do qual se aproximava agora somente para manter um mínimo de dignidade. Não deixaria que sua alma compactuasse com esse apanhado lunático de ideais-algemas.

Era mais um daqueles no qual a literatura fez mal. Acreditar no romance e na poesia substituía a religião, mas lhe imputava uma forma estranha de ascetismo e devoção. Deveria sempre escolher o contrário, o mais difícil, o mais vago e o mais marginal. Sentia-se sempre forçado a promover este sentimento de inconformismo e liberdade que achava típicos dos homens de artes e letras. Essa era a desculpa mais simpática para o seu humor inconstante e para seus atos impensados.

Sabia que não faria muitos seguidores entre seus companheiros de viagem. Arranjar-lhe-iam uma sigla qualquer e o colocariam no hospício como falso profeta. Seguramente era isto que o impedia de discursar ali mesmo como um pregador de praça. O falso profeta já residia nele e ele o conhecia bem. Era um personagem de sua alma que não respeitava mas lhe trazia um certo conforto em dias como esse.

Observava embasbacado os ônibus que passavam. Abarrotados como sempre a essa hora!

O seu teria de ser o mais vazio hoje. Deixou levianamente que alguns passassem durante longos minutos e então embarcou no mais vazio, que deveria ter umas cinqüenta pessoas pelo menos.

“Abandonai as esperanças todos vós que entrais”, pensou.

E lá estava ele, tranqüilo, chacoalhando como o falso malandro da música e observando o generoso decote da loira, quando a fumaça o perturbou. Queria conter a vontade de socar o indivíduo que, despreocupado com os cinqüenta passageiros, fumava junto à janela. Mas, como poderia ele conviver com tal absurdo? Em seu interior, vozes discursavam freneticamente sobre as causas do mau comportamento. Lembrou-se das mulheres grávidas que embarcavam no ônibus e nenhum marmanjo sequer levantava para dar o seu lugar.

Os ônibus eram uma das muitas fontes para o seu mau humor. Sempre havia algo além da já habitual hiper-lotação que o irritava neles: os péssimos motoristas, com a habilidade em fazer com que o carro freasse bruscamente, lançando seus passageiros em direção ao vidro da frente ou sobre o colo dos que estavam sentados; a má educação dos próprios passageiros, sua falta de solidariedade para com aqueles que notadamente não poderiam se equilibrar enquanto seguravam suas bolsas e para com idosos e deficientes. Fora vítima de todas as variantes possíveis, como a do marmanjo que abre as pernas como se estivesse em seu sofá e a da velhinha que interrompe sua leitura para pregar o Evangelho de cabo a rabo. E sua sorte é que era homem pois, se fosse mulher, já teria dado uma bordoada nos bolinadores de coletivo, figurinhas não raras e típicas daquele horário.

Dificilmente não tomava parte. Não poderia reclamar se não fizesse algo de concreto para mudar a situação, achava. Sempre tentou articular as soluções com boa educação, esclarecendo o que seria correto, achando que assim prestava um serviço àquele cidadão mal instruído. Cansara de avisar aos motoristas de sua responsabilidade quanto à vida dos passageiros e aos mal-educados que era sua obrigação zelar pelas grávidas, idosos e deficientes, além de ser lei e parará... Mas sua paciência estava chegando ao fim.

¾ O senhor podia fazer o favor de apagar o cigarro, disse calmamente.

O indivíduo tomou um susto ao ser cutucado. Fumava um mata-rato fumacento e soprava a fumaça pela janela; o que não adiantava, pois o cigarro fedia muito. Virou-se desleixadamente para nosso amigo e disse num tom jocoso.

¾ Pô, mermão. Eu num ‘tô te incomodando, ‘tô?

Ficou paralisado durante alguns segundos pensando no que fazer... Insistir na catequese do selvagem? Sentia os olhares sobre si e as vozes em seu interior começaram a se multiplicar. Rindo de sua intenção em preservar seus direitos? Olhou mais uma vez para a cara sorridente do negrão. Não iria discutir consigo mesmo. Outro tapa certeiro dava conta do recado.

¾ Esse cara é maluco.

¾ Bem feito pro fumante.

¾ Motorista, pára o carro.

A maldita confusão fez com que ele tivesse que saltar. Um atraso desnecessário e difícil de explicar. Iria andar pelo Flamengo até que sua mente se acalmasse novamente.

Não lhe interessava saber se as pessoas do ônibus entenderam sua atitude desesperada. Chegou até mesmo a duvidar da própria sanidade. Afinal, o cara era grande e ficou tão aturdido pela fuzarca dos outros passageiros que nem reagiu. Ou vai ver que era um bundão mesmo, pensando bem.

De qualquer forma, sua pequena aventura matinal o divertiu de uma forma mórbida e deu uma longa risada pensando em como Franco reagiria ao saber daquilo. O cigarro do cara saiu voando pela janela e dois passageiros surgiram do nada como turma-do-deixa-disso. Seguraram-no e foram rapidamente o empurrando em direção à porta sem maiores complicações. “Quem devia ter sido expulso do ônibus era ele porra!”, gritava para os “seguranças”. Mesmo assim foi lançado para fora.

Saltou no Flamengo e decidiu andar um pouco. Caiu em si e percebeu que realmente exagerara. Ficou lá, observando a baía e seus personagens para relaxar.

Irresponsável. Era isso que lhe sobrava. Era por isso que podia ser chamado a cada vez que, insatisfeito, se revoltava com a apatia a sua volta e, impossibilitado de se reunir às forças terroristas, recorria à pura e sincera irresponsabilidade.

Depois de mais alguns minutos de vagabundagem reflexiva pôde embarcar novamente em outro ônibus.



* * *



Destino alcançado. Uma hora e meia atrasado.

Pensava numa boa desculpa para fugir e pensar. Realmente não passava bem, efeito das noites mal dormidas, insônia, depressão e ansiedade.

Poderia ir ao médico e assim ocupar apenas duas horas do dia. Mas para quê? Não havia vantagem alguma em ser envenenado com algum neuroléptico ou com comprimidos para dormir. Bem, eles poderiam até dar um barato, mas (caralhos!), até a medicina é escrava deste mundo bravo e novo?

Munido de uma sensação terrível de tristeza cumprimentou o porteiro e subiu para o quarto andar do escritório.

Depois de quatro horas de papéis e de gente endividada pedindo conselhos iria almoçar. Trabalhava numa firma de cobrança, era parte da engrenagem e não havia outro modo mais imediato de pagar seu aluguel.

Seu amigo, Ricardo, sempre achou engraçada a forma por que ele se referia ao próprio trabalho. Costumava chamá-lo de comunista medroso, revolucionário de boutique. O que Ricardo não sabia é que ele levava a sério estas provocações. Realmente havia aceitado trabalhar ali por falta absoluta de opções mais compatíveis, mas subira rápido e devido a seu talento criativo o temporário tornou-se emprego.

Foi arrancado de sua papelada subitamente por Charlie, o office-boy-figura, que trazia um recado do chefe e um convite para mais uma de suas noitadas.

¾ Aí sangue, o BigBoss, ‘tá querendo levá um lero contigo... Ah! E hoje rola aquela reunião do samba.

¾ Porra! Todo dia?

¾ Hoje é sexta mané; fui.

Acenou para o elétrico boy e levantou. Nem se dera conta de que já era sexta.

“Quê diabos esse merda quer comigo?”

Subiu até a sala do chefe e quase vomitou em sua mesa quando o viu almoçando um surrado hambúrguer de Kombi. Não por causa do hambúrguer, mas por um asco súbito e inevitável que o atingira ao pensar que aquele careca ridículo e nada criativo conseguira uma estabilidade graças a abnegação quase inata dos imbecis e puxa-sacos.

¾ Paulo, meu amigo... Sei que você tem andado muito ocupado... Mas, é que a firma... Bem, você sabe... Bem... Confiamos em você para resolver um probleminha que tivemos em São Paulo. Como você morou lá, não é? Pendia a cabeça para o lado e gesticulava, falando inseguramente.

Ele apenas observava aquele ser desprezível que tinha medo de olhá-lo nos olhos diretamente e conservava sempre a cabeça baixa.

“Pulha, cabeça de merda! Devia fazer contigo o que fiz no ônibus hoje. Dar-te uma bordoada nas fuças e te dizer quem é que merece ter o cargo de chefe aqui”.

Secamente interrompeu:

¾ Me manda um memorando o.k. Eu vou.

E partiu, batendo a porta.



* * *



Psicanálise. É, talvez psicanálise desse jeito. Toda esta crise com relação a autoridade não passa de uma variante mal-disfarçada do complexo de Édipo. Mas Freud que se foda. O que ele quer é mudar esta porra de mundo e não ficar entendendo ou justificando. Mudar o mundo porra, não os canais da televisão.

Ficar em casa numa sexta à noite, relembrando um dia de cão, não lhe pareceu saudável. Olhou para o relógio de parede e decidiu que alguma bebida lhe faria mais bem do que esta letargia televisiva.

Partiu para o bar que Charlie indicara.

Não gostava nem um pouco de pagode. Apenas algumas bandas dos 70 faziam sua cabeça. Podia dizer que nem mesmo gostava de música, pois não a consumia como acreditava que os outros faziam. Contentava-se com sua irrisória coleção de fitas e sequer ligava o rádio. Nas festas, a não ser que a companhia fosse muito agradável, sentia-se deprimido por ter que aturar os sucessos atuais.

No caminho, ele ainda se questionou quanto à validade desta fuga. Era tarde demais. Antes que o bom senso o levasse a fugir, chegara ao local marcado.

Charlie já estava alegre, que é a forma mais simpática do bêbado. E, para sua surpresa, a roda de samba era um tributo ao Rio antigo e a seus compositores mais geniais.

O amigo o recebeu acaloradamente e pôs um copo em sua mão, apresentando-o às belas senhoras e aos sambistas presentes. Foi uma grata surpresa. Não esperava que Charlie tivesse bom gosto para música e pensava que o encontro terminasse se transformando numa sessão de tortura musical da famigerada bunda-music. Não pôde deixar de se auto-repreender por este gesto de preconceito.

Após alguns copos o abraço em Charlie o pôs em paz com sua consciência, ou melhor, pôs sua consciência a nocaute, pois lá estava ele, puxando o coro num Ari Barroso desafinado e tentando lembrar das letras de Paulinho da Viola, das quais sabia poucos refrães.

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